Homens de terno branco, chapéu panamá, sapatos bicolores. Mulheres de vestidos rodados em verde, amarelo e turquesa, dançando entre bananas e abacaxis. A festa delirante foi o cenário criado por Nelson Motta para o falso manifesto Cruzada tropicalista, publicado na finada Última Hora em 5 de fevereiro de 1968. Sem saber, o jornalista e produtor musical batizava o movimento cultural que incomodou a ditadura militar e lançou artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes, que mudariam para sempre o cenário musical brasileiro.
Enquanto a tropa de elite da música popular ainda bebia na fonte comportada da bossa nova e a juventude engajada entoava canções de protesto de Chico Buarque e Geraldo Vandré, uma turma de cabeludos flertava com o movimento hippie e trocava o trio uísque, banquinho e violão pela guitarra elétrica. E alucinógenos mais poderosos, como o LSD.
Na pré-história da TV brasileira, os tropicalistas tomaram de assalto os festivais que arrastavam multidões para ouvir artistas populares. Nas eliminatórias do III Festival Internacional da Canção, em São Paulo, Caetano e Os Mutantes enfrentaram uma chuva de ovos e tomates com “É proibido proibir”, uma confusão sonora que terminava com o slogan dos estudantes franceses berrado até o limite de distorção dos microfones. Sem compromisso com a esquerda estudantil, Caetano desafiou as vaias: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?” Mas a oposição não estava só na militância política: a anarquia da Tropicália incomodava o status-quo da música popular, como lembra Nelson Motta:
– Os tropicalistas ofereciam liberdade total de temas, ritmos e vocabulário. Isso incomodou as estrelas da MPB, cada vez mais fechada e radical.
Repressão e beco sem saída
Em maio de 68, Caetano coordenou as gravações de Tropicália ou Panis et Circensis, álbum coletivo que reuniu outros ícones da turma como Capinam, Tom Zé, Gal Costa e o poeta Torquato Neto. Na capa, o maestro Rogério Duprat, responsável pelos arranjos, segura um penico como se fosse uma xícara. A experimentação chegava ao limite na mistura de poesia concreta, arte contemporânea, cinema de vanguarda e ácido lisérgico.
Para um movimento que vivia da liberdade, o AI-5, sete meses depois, veio como sentença de morte. Acusados de subversão, Caetano e Gil foram presos até o início de 69, quando rumaram para o exílio em Londres. Segundo Nelson Motta, a interrupção forçada livrou os tropicalistas de um “beco criativo sem saída”.
– O movimento estava cada vez mais experimental, cada vez mais louco, e começava a se afastar do público – lembra o jornalista, que vê no samba Aquele abraço, composto por Gil no caminho entre a cadeia e o aeroporto, um reencontro com o pop e o mundo real.
Velhinhos, mas influentes
Quatro décadas depois, as influências da Tropicália sobrevivem no som de artistas como Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Marcelo D2 e Seu Jorge. Com os cabelos grisalhos e bem aparados, Caetano é um senhor que ainda concede entrevistas polêmicas, mas dança no compasso das gravadoras, canta Cole Porter em inglês e sobe ao palco de terno e gravata. Gil também trocou a cabeleira e as roupas coloridas pelo figurino embecado de ministro da Cultura do governo Lula.
Os tropicalistas envelheceram, é verdade, mas continuam influenciando e movimentando a cena cultural brasileira. E despertando interesse mundial, como comprova a exposição Tropicália, em cartaz até 30 de setembro no Museu de Arte Moderna do Rio, depois de passar por Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. A mostra reúne discos, cartazes, poemas e os penetráveis de Helio Oiticica, papa tropicalista da arte contemporânea. Os trabalhos foram abertos em fevereiro do ano passado, em Londres, com shows de Tom Zé, Gal Costa, Gilberto Gil e a primeira apresentação do aguardado revival dos Mutantes. Mas sem a cantora Rita Lee – que deixou o barco em 1972, quando o grupo mergulhava no rock progressivo, para se tornar rainha do pop nacional.
* Publicado originalmente em fevereiro de 2006, quando a exposição Tropicália foi inaugurada no Barbican, em Londres